17 agosto 2007

A sociedade aberta e seus inimigos

Por Rivadávia Rosa

Resumo de A Sociedade Aberta seus Inimigos (The Open Society and its Enemies), de Sir KARL R. POPPER (Karl Raimund Popper - Viena, 28 de Julho de 1902 — Londres, 17 de Setembro de 1994) – estudo sobre as doutrinas totalitárias, dos inimigos da política liberal e uma vigorosa defesa da DEMOCRACIA escrita entre março de 1938 (invasão da Áustria) a 1943.

A FAVOR: “Embora somente poucos possam dar origem a uma política, somos todos capazes de julgá-la.” PÉRICLES (cerca de 430 a.C.)

CONTRA: “O maior de todos os princípios é que ninguém, seja homem ou mulher, deve carecer de um chefe. Nem deve a mente de qualquer pessoa ser habituada a permitir-lhe fazer ainda que a menor coisa por sua própria iniciativa, nem por zelo, nem mesmo por prazer. Na guerra como em meio à paz, porém, deve ela dirigir a vista para seu chefe e segui-lo fielmente. E mesmo nas mais ínfimas questões deve manter-se em submissão a essa chefia. Por exemplo, deve levantar-se, ou mover-se, ou lavar-se, ou tomar refeições ... apenas se lhe for ordenado que o faça. Numa palavra, deve ensinar sua alma, por hábito prolongado, a nunca sonhar em agir independentemente e a tornar-se totalmente incapaz disso”. PLATÃO

A SOCIEDADE ABERTA E SEUS INIMIGOS

Sir. Karl R. Popper


INTRODUÇÃO

Este livro esboça algumas das dificuldades enfrentadas pela nossa civilização, em sua busca da humanidade e da razoabilidade, da igualdade e da liberdade. Uma civilização que ainda não se recuperou de todo do choque inicial de seu nascimento – da transição da sociedade tribal, com sua submissão às forças mágicas, a sociedade fechada, para a sociedade aberta, que põe em liberdade as faculdades críticas do homem. O choque dessa transição é um dos fatores que possibilitaram o surgimento dos movimentos reacionários que tentaram, e ainda tentam, derrubar a civilização e retornar ao tribalismo.

Este livro busca contribuir para que compreendamos o totalitarismo e a significação da permanente luta contra ele. Procura também examinar a aplicação dos métodos críticos e racionais da ciência aos problemas da sociedade democrática. Analisa os princípios da mecânica social gradual, em oposição à mecânica social utópica – a mais poderosa das quais é a que denomino historicismo.

O estado ainda insatisfatório de certas ciências sociais suscita o problema de seus métodos – seu problema mais fundamental. Um exame cuidadoso dessa questão levou-me à convicção de que as profecias históricas de longo prazo estão fora do âmbito do método científico. O futuro depende de nós mesmos, e nós não dependemos de qualquer necessidade histórica. Há, contudo, filosofias sociais influentes que sustentam o oposto. Afirmam que a tarefa da ciência é fazer predições; e que cabe às ciências sociais fornecer-nos profecias históricas de longo prazo, acreditando haver descoberto leis históricas que nos habilitam a profetizar o curso desses acontecimentos. Chamei de historicismo às várias filosofias sociais que sustentam afirmações dessa espécie.

O historicismo visa o rigor científico. Este livro não o faz; ele deve ao método científico a consciência de suas limitações. Não oferece provas onde nada pode ser provado, nem pretende ser científico onde nada mais pode dar que uma opinião pessoal. Não procura substituir os velhos sistemas de filosofia por um novo sistema. Busca mostrar que essa sabedoria profética é prejudicial, e que as metafísicas da história impedem a aplicação dos métodos graduais da ciência aos problemas da reforma social.

O HISTORICISMO E O MITO DO DESTINO

É crença generalizada que uma atitude verdadeiramente científica ou filosófica para com a política e uma compreensão mais profunda da vida social em geral devem basear-se no estudo e na interpretação da história humana. O cientista ou filósofo social tentará entender as leis do desenvolvimento histórico. Se o conseguir, estará capacitado a predizer desenvolvimentos futuros. Poderá, então, colocar a política sobre bases sólidas e dar-nos conselhos práticos, dizendo-nos quais as ações políticas mais em condições de ter êxito, ou de falhar.

Esta é uma breve descrição de uma atitude denominada historicismo. É uma velha idéia, ou antes, um conjunto frouxamente relacionado de idéias, que infelizmente se tornaram nossa atmosfera espiritual; são tidas como pacíficas e não são discutidas. Infelizmente, como se mostrará neste livro, esse enfoque historicista das ciências sociais produz resultados pobres.

Tentei esboçar um método que, acredito, produz melhores resultados. Contudo, se o historicismo é um método falho, que produz resultados sem valor, é útil empreender um esboço histórico para averiguar sua origem e as causas do êxito de sua permanência, e analisar as diversas concepções que gradualmente se acumularam em torno da doutrina do historicismo central: a de que a história é controlada por leis históricas ou evolucionárias específicas, cujo descobrimento nos capacitaria profetizar o destino da humanidade.

HERÁCLITO

Na interpretação politeísta anterior a Heráclito, a história é o produto da vontade divina ­– os deuses homéricos não desenvolveram leis gerais do desenvolvimento histórico. A preocupação de Homero é explicar, não a unidade da história, mas sua falta de unidade. Sua interpretação nos oferece um certo sentido vago de destino, mas o destino final em Homero não é revelado.

Hesíodo foi o primeiro a introduzir a noção de uma tendência geral do desenvolvimento histórico. Sua interpretação da história é pessimista; acreditava que a humanidade, em sua evolução a partir da Idade Áurea, estava destinada à degeneração, tanto física como moral.

A descoberta da noção de mudança é devida a Heráclito. Até então o mundo era a totalidade das coisas, o cosmos. A filosofia e a física eram a investigação da “natureza”, o material original com que o mundo fora construído. Os processos eram parte da natureza ou destinavam-se a construí-la ou mantê-la, perturbando e restaurando ciclicamente a estabilidade de uma estrutura estática.

O gênio de Heráclito foi além: postulou que não havia uma estrutura estável, nenhum cosmos. O mundo não é uma estrutura, mas um processo colossal; não é a soma de todas as coisas, mas a totalidade de todas as mudanças, ou fatos. Reduzidas todas as coisas a processos, Heráclito discerne nos processos uma lei do destino inexorável, irresistível e imutável; e tendo destruído o cosmos como estrutura, o reintroduz como a ordem predestinada dos eventos no processo universal. Essa noção historicista de um destino inexorável combina-se à unidade mística do mundo, que só pode ser apreendida pela razão.

O efeito dessa revolução foi devastador numa sociedade tribal, caracterizada pela estabilidade e pela rigidez, determinadas por tabus sociais e religiosos; onde cada um tem seu lugar marcado no conjunto da estrutura social, sente que esse lugar é o adequado, “natural”, e que lhe foi destinado pela forças que regem o mundo. Uma sociedade incapaz de distinguir entre leis, no sentido de normas legais, e leis naturais: ambas são mágicas, não passíveis de crítica racional.

A filosofia de Heráclito pode ser encarada como a expressão de um sentimento de derivação, reação à dissolução das antigas formas tribais da vida social. Na Europa moderna as idéias historicistas foram revividas durante a revolução industrial e pelas revoluções políticas na América e na França.

É surpreendente encontrar nos fragmentos de Heráclito, que datam de cerca do ano 500 antes de Cristo, tanto do que é característico das modernas tendências historicistas e antidemocráticas. Por ter sido Heráclito um pensador de força e originalidade insuperadas, muitas de suas idéias, por intermédio de Platão, se tornaram parte do corpo central da tradição filosófica.

A TEORIA PLATÔNICA DAS FORMAS OU IDÉIAS

Platão viveu em um período de guerras e lutas políticas ainda mais instável que o de Heráclito. Em seu tempo a sociedade, na verdade “tudo”, estava em fluxo. Ele sintetizou essa experiência em uma lei do desenvolvimento histórico: toda mudança social é corrupção, decadência, degeneração.

Heráclito relutou ante a idéia de substituir o cosmos pelo caos; aceitou que a mudança inevitável é regida por uma lei invariável. Platão vai mais longe: a degeneração inexorável podia ser paralisada pela vontade moral e pela força da razão humana, detendo-se qualquer mudança política. Com esse objetivo analisa as características de um Estado livre da degeneração – o Estado perfeito, que não conhece mudança. Essa crença em coisas perfeitas e imutáveis, a chamada Teoria das Formas ou Idéias, é a base de sua filosofia, a seguir sumariada. As coisas em fluxo, degeneradas e decadentes (como o Estado), descendem de coisas perfeitas – são cópias de seus originais, as suas “Formas” ou “Idéias”. A Idéia não é uma “idéia de nossa mente”, mas uma coisa real. É mais real que todas as formas existentes, que estão em fluxo e que, apesar de sua aparente solidez, estão condenadas a decair, ao contrário da Idéia, que é perfeita e não perece. Formas ou Idéias não podem ser percebidas pelos nossos sentidos por não se acharem em nosso espaço e tempo, como sucede às coisas comuns mutáveis, as “coisas sensíveis”. A Idéia platônica serve como ponto fixo de partida para explicar tudo que está em fluxo contínuo no espaço ou no tempo (em especial a história humana), sobre o que não podemos ter conhecimento real, mas, na melhor das hipóteses, “opiniões” vagas e ilusórias.

Uma ciência política seria impossível na ausência de referenciais fixos. Platão supre essa deficiência postulando que embora “não pudesse haver definição de qualquer coisa sensível, pois estavam sempre em mudança”, as Formas ou Idéias possibilitariam conhecer as virtudes das coisas sensíveis, do mundo em fluxo. A essa atitude chamo essencialismo metodológico: o ponto de vista de que a tarefa do conhecimento puro, ou “ciência”, é descobrir e descrever, por meio de definições e da intuição, a verdadeira natureza das coisas, por oposição ao nominalismo metodológico, o método aceito hoje nas ciências naturais: a descrição de como uma coisa se comporta em várias circunstâncias e das regularidades nesse comportamento.

A teoria das Formas ou Idéias tem pelo menos três funções na filosofia de Platão: 1) Serve como instrumento metodológico que possibilita o puro conhecimento científico do mundo das coisas em fluxo e dos problemas de uma sociedade mutável; permite edificar uma ciência política. 2) Fornece a chave da teoria da mudança, da decadência e da história. 3) Permite deter a mudança social, sugerindo um “Estado melhor” semelhante à Idéia de um Estado que não pode decair.

O historicismo coabita em Platão com seu oposto, a atitude da mecânica social: a crença de que é possível influenciar o destino. O “mecânico social” não questiona as tendências históricas ou do destino do homem. Acredita que ele é o senhor de seu próprio destino e da história. Opõe-se à crença de que a ação política inteligente só é possível se o curso da história for previamente determinado; opõe-se ao historicista, que a compreende como o conhecimento das tendências históricas imutáveis.

Limito meu tratamento de Platão ao seu historicismo. O leitor não deve esperar um tratamento “completo e justo” do Platonismo. Minha atitude para com o historicismo é de franca hostilidade. Minha análise dos aspectos historicistas do Platonismo é fortemente crítica. Embora muito admire na filosofia de Platão, não considero minha tarefa trazer acréscimos aos incontáveis tributos a seu gênio. Sinto-me antes inclinado a destruir o que, em minha opinião, é maléfico nessa filosofia: sua tendência totalitária.

MUDANÇA E REPOUSO

A sociologia de Platão é uma engenhosa mistura de especulação e aguda observação dos fatos. Sua base especulativa é a teoria das Formas e do fluxo e decadência universais. Constrói sobre essa base idealista uma teoria da sociedade surpreendentemente realista, capaz de explicar as principais tendências da evolução histórica das cidades-Estados gregas e das forças políticas e sociais que atuavam em seu próprio tempo.

Platão desenvolveu uma sistemática sociológica historicista para compreender e interpretar o mutável mundo social. Partindo dos Estados existentes como cópias decadentes de um Ideal imutável, tentou reconstruir a Idéia do Estado e descrever uma sociedade que a ela mais se assemelhasse. Utilizou como material para sua reconstrução tradições antigas e sua análise das instituições sociais de Esparta e Creta – as mais antigas formas de vida social que podia encontrar na Grécia. Nelas reconheceu formas de sociedades tribais ainda mais antigas. Para fazer uso adequado desse material, necessitou de um princípio para distinguir entre os traços bons, ou originais, das instituições existentes, e seus sintomas de decadência. Achou esse princípio em sua lei das revoluções políticas: a desunião da classe governante e sua preocupação com os negócios econômicos são a origem de qualquer mudança social. Seu Estado melhor deveria ser reconstruído de modo a eliminar todos os germes e elementos de desunião e decadência, o mais radicalmente possível; deveria tomar como base o Estado espartano; e garantir as condições necessárias à unidade da classe dominante, assegurada por sua abstinência econômica, sua educação e seu adestramento.

Interpretando as sociedades existentes como cópias decadentes de um Estado ideal, Platão deu às opiniões algo rudes de Hesíodo sobre a história humana um fundo teórico e uma rica aplicação prática. Desenvolveu uma teoria historicista notavelmente realista, que encontrava a causa da mudança social na desunião de Heráclito e na luta de classes, em que reconhecia as forças impulsionadoras e corruptoras da história. Aplicou esses princípios historicistas à história do Declínio e da Queda das cidades-Estados da Grécia, e especialmente a uma crítica da democracia, que descreveu como efeminada e degenerada. E mais tarde, nas Leis, também os aplicou a uma história do Declínio e Queda do Império Persa, iniciando uma longa série de dramatizações sobre Declínios e Quedas de impérios e civilizações. Esse esforço pode ser interpretado como uma tentativa das mais impressionantes para explicar e racionalizar sua experiência da derrocada da sociedade tribal, experiência análoga à que levara Heráclito a desenvolver a primeira filosofia de mudança.

NATUREZA E CONVENÇÃO

Platão nos legou uma reconstrução surpreendentemente verdadeira, ainda que um tanto idealizada, de uma sociedade grega primitiva, tribal e coletivizada. Uma análise das forças econômicas que ameaçavam a estabilidade política dessa sociedade capacita-o a descrever as instituições sociais necessárias para deter essa ameaça. Fornece-nos também uma reconstrução racional do desenvolvimento econômico e histórico das cidades-Estados gregas.

Seu sucesso é prejudicado por seu ódio à sociedade em que vivia e por seu romântico amor à velha forma tribal de vida social. É essa atitude que o leva a formular sua lei de desenvolvimento histórico da degradação e decadência. E a mesma atitude é também responsável pelos elementos irracionais, fantásticos e românticos de sua análise, de outro modo excelente.

Derivou sua teoria historicista da doutrina filosófica de que o mundo visível e mutável não passa de uma cópia decadente de um mundo invisível e imutável. Mas essa engenhosa tentativa de combinar um pessimismo historicista com um otimismo ontológico conduz, quando elaborada, a dificuldades. Tais dificuldades forçaram-no à adoção de um naturalismo biológico que levou (juntamente com o “psicologismo” – a teoria de que a sociedade depende da “natureza humana” de seus membros) ao misticismo e à superstição, culminando em uma teoria matemática pseudo-racional da criação.

Essa estrutura exibe um dualismo metafísico fundamental no pensamento de Platão. No campo da lógica, esse dualismo apresenta-se como a oposição entre o Universal e o Particular. No campo da especulação matemática, surge como a oposição entre a Unidade e a Pluralidade. No campo da epistemologia, é a oposição entre o Conhecimento Racional, baseado no pensamento puro, e a Opinião baseada nas experiências particulares. No campo da ontologia, é a oposição entre a Realidade una, original, invariável e verdadeira, e as Aparências múltiplas, variáveis e enganosas; entre o puro ser e o tornar-se, ou mais precisamente, a mutação. No campo da cosmologia, é a oposição entre o que gera e o que é gerado e que deve decair. Na ética, é a oposição entre o Bem, o que preserva, e o Mal, o que corrompe. Na política, é a oposição entre a unidade coletiva, o Estado, que pode alcançar a perfeição e a autarquia, e a grande massa do povo, a pluralidade individual, os homens particulares que devem permanecer imperfeitos e dependentes, e cujas particularidades devem ser suprimidas em benefício da unidade do Estado. Essa filosofia dualista, creio, originou-se do anseio de explicar o contraste entre a visão de uma sociedade ideal e o odioso estado de coisas que via no campo social – o contraste entre uma sociedade estável e uma sociedade em processo de revolução.

JUSTIÇA TOTALITÁRIA

O problema da justiça em Platão relaciona-se com o da igualdade e da desigualdade, ao individualismo e ao coletivismo. Individualismo, coletivismo, altruísmo e egoísmo descrevem atitudes normativas. Nesse contexto, individualismo pode ser usado de dois modos diferentes: em oposição ao coletivismo ou ao altruísmo. Altruísmo, contudo, é também antônimo de egoísmo. Platão identificou coletivismo com altruísmo. Seu holismo exigiu que o indivíduo deveria submeter-se aos interesses do todo: “A parte existe em função do todo, mas o todo não existe em função da parte... Fostes criado em função do todo, e não o todo em função de vós”. Sugere que se não pudermos sacrificar nossos interesses pelo bem do todo, somos egoístas.

Ora, o coletivismo não se opõe necessariamente ao egoísmo, nem se identifica com o altruísmo. Um individualista pode ser altruísta; pode estar pronto a fazer sacrifícios para ajudar os outros. A identificação do individualismo com o egoísmo fornece a Platão poderoso instrumento para defender o coletivismo e para atacar o individualismo.

Platão estava certo em ver nessa doutrina o inimigo do Estado de castas. Odiava o indivíduo e sua liberdade tanto quanto odiava as variadas experiências particulares, a variedade do mundo mutável das coisas sensíveis. Na República desenvolve uma doutrina da justiça que é incompatível com o individualismo. Seu coletivismo radical nem mesmo contempla os chamados problemas de justiça – o julgamento imparcial das causas dos indivíduos em litígio. Só importa o coletivo na totalidade, e a essência da justiça está descrita na República: “justo” é sinônimo do que é do “interesse do Estado melhor”: deter qualquer mudança, pela manutenção de rígida divisão de classes e do governo de uma classe. A teoria coletivista, tribal e totalitária da moralidade emerge: “É bom o que é do interesse de meu grupo, de minha tribo, de meu Estado”.

A República é talvez a mais esmerada monografia já escrita a respeito da justiça. Contudo, na discussão das teorias de seu tempo, a noção de justiça como a igualdade perante a lei (“isonomia”) nunca é mencionada. Tal omissão só pode ser explicada por sua oposição às tendências igualitárias e individualistas de seu tempo. Visa restabelecer o tribalismo, pelo apelo a uma visão da justiça, em tudo semelhante à moderna definição totalitária do direito.

O PRINCÍPIO DA LIDERANÇA

A teoria da justiça de Platão indica claramente que ele via o problema fundamental da política na indagação: Quem deverá dirigir o Estado? Tenho a convicção de que Platão, ao expressar o problema da política dessa forma, introduziu na filosofia política permanente confusão, análoga à que criou ao identificar coletivismo e altruísmo. Esse tipo de indagação admite somente respostas óbvias: “o mais sábio”, “o melhor”.

Uma pergunta alternativa é a seguinte: como poderemos organizar as instituições políticas de modo tal que governantes maus ou incompetentes sejam impedidos de causar demasiado dano? Os que optam pela primeira indagação tacitamente admitem que o poder político é “essencialmente” livre de controle. Denominei-a teoria da soberania. Os que preferem a segunda indagação, a teoria de controles e equilíbrios, enfatizam o controle institucional dos governantes através do equilíbrio de suas forças com outras forças. Baseiam-se na decisão de evitar a tirania e resistir a ela.

Uma dicotomia é apropriada para distinguir os dois tipos principais de governo. O primeiro consiste nos governos de que podemos nos livrar sem derramamento de sangue – por exemplo, por eleições gerais numa democracia. As instituições sociais fornecem meios pelos quais os governados podem depor os governantes; a estabilidade das instituições sociais assegura que não serão facilmente destruídas pelos que detiverem o poder. O segundo tipo, a tirania, consiste em governos de que os governados não podem se livrar exceto por meio de revoluções.

A ênfase de Platão sobre o problema de “quem deve governar” implicitamente admite a teoria geral da soberania. Elimina, sem sequer a suscitar, a questão do controle institucional dos governantes e de um equilíbrio de seus poderes. O interesse é desviado das instituições para a pessoa do governante; o problema torna-se o de escolher líderes naturais e adestrá-los para a liderança.

O programa político de Platão foi mais institucional que personalista: esperava deter a mudança política pelo controle institucional da sucessão na liderança, baseado em uma concepção autoritária do ensino e na autoridade do sábio letrado, do “homem de comprovada probidade”.

O REI FILÓSOFO

Por que Platão requer que os filósofos sejam reis, ou os reis filósofos? A única resposta a essa pergunta é a de que Platão entende de forma particular o termo “filósofo”: seu filósofo não é quem busca devotadamente a sabedoria, mas seu orgulhoso possuidor.

Que funções deveria deter o governante do Estado de Platão, o “filósofo plenamente qualificado”? Essas funções podem ser divididas em dois grupos principais: as relacionadas com a fundação do Estado e as ligadas à sua preservação. A primeira e mais importante função do rei filósofo é a de fundador e legislador da cidade. É clara a razão de necessitar de um filósofo para essa tarefa. Se o Estado deve ser estável, deverá ser uma cópia verdadeira da Idéia ou Forma do Estado. Só um filósofo plenamente capacitado na mais elevada das ciências, a dialética, será capaz de copiar o Original.

Para a preservação do Estado, sua exigência política central é a da soberania do rei filósofo. Somente o atendimento a essa exigência pode pôr fim aos males da vida social, à instabilidade política e à sua causa mais oculta, a agitação do mal dos membros da raça humana, sua degeneração racial: “A menos que em suas cidades os filósofos sejam investidos do poder de reis, ou que aqueles chamados reis e oligarcas se tornem genuínos e plenamente qualificados filósofos; e a menos que estes dois poderes, o político e o filosófico, se fundam, a menos que isso aconteça, meu caro Glaucon, não poderá haver repouso; e o mal não cessará de agitar as cidades, nem, creio eu, a raça dos homens”.

ESTETICISMO, PERFECCIONISMO E UTOPISMO

Considero dos mais perigosos um aspecto do programa político de Platão. Sua análise é de grande importância prática, do ponto de vista da mecânica social racional. Tenho em mente a denominada mecânica utópica, em oposição a outra espécie de mecânica social, que considero a única racional, e que pode ser chamada de mecânica gradual.

A mecânica utópica pode ser assim descrita. Qualquer ação racional deve ter um certo objetivo. É racional porque visa seu objetivo consciente e consistentemente, e determina seus meios de acordo com o fim. Escolher o fim é a primeira etapa do agir racionalmente. E devemos distinguir os fins últimos dos passos intermediários, caso contrário não indagaremos se esses fins parciais são suscetíveis de promover o fim definitivo, deixando de agir racionalmente. Esse processo metodológico é convincente e atraente; é a espécie de metodologia capaz de atrair os que padecem de preconceitos historicistas. Isso só o torna mais perigoso e mais imperativa sua crítica.

Julgo a mecânica gradual metodolo-gicamente sadia; o político que adota esse método pode ou não ter um projeto de sociedade em mente, pode ou não esperar que a humanidade atinja um dia um estado ideal e alcance a felicidade e a perfeição sobre a Terra. Mas terá consciência de que esta perfeição, se atingível, está muito distante, e que cada geração tem sua própria aspiração; talvez não tanto a aspiração de ser feliz, mas a de não ser infeliz sempre que puder evitar. A mecânica gradual, em conseqüência, adotará o método de analisar e combater os males maiores e mais prementes da sociedade, em vez de buscar seu maior bem definitivo. Essa diferença de métodos não é meramente verbal; é a diferença entre um método razoável de aperfeiçoar a sorte da humanidade e um método que, se realmente posto em prática, pode levar a um intolerável aumento do sofrimento humano. Os projetos de mecânica gradual são relativamente simples. São projetos específicos; se não funcionarem, o dano não é grande, nem difícil a correção. São menos arriscados e menos sujeitos à controvérsia. Ao contrário, o utópico tenta realizar um Estado ideal, usando um projeto de sociedade como um todo; isso exige um forte regime centralizado de uns poucos, passível de conduzir a uma ditadura.

A mecânica utópica depende da crença platônica num Ideal absoluto e imutável, da crença de que há métodos racionais para determinar qual é esse Ideal e quais os métodos para sua realização. O esteticismo e o radicalismo da mecânica utópica conduzem ao irracionalismo: substituem a razão por uma esperança desesperada em milagres políticos, ao rejeitar a tentativa e erro da mecânica gradual. Essa atitude irracional nasce da embriaguez dos sonhos de um mundo belo e romântico; pode buscar sua cidade celeste no passado ou no futuro; apela mais para nossas emoções do que para a razão. Mesmo com as melhores intenções de fazer o céu na Terra, só consegue fazer dela um inferno – aquele inferno que somente o homem prepara para seus semelhantes.

A SOCIEDADE ABERTA E SEUS INIMIGOS

As sociedades tribais caracterizam-se por uma atitude mágica ou irracional dos costumes da vida social e pela sua rigidez. Não distinguem as regularidades convencionais da vida social das regularidades da “natureza”; crêem que ambas são impostas por uma vontade sobrenatural. Baseadas na tradição tribal coletiva, não admitem problemas de natureza moral, e suas instituições não dão espaço à responsabilidade pessoal. À sociedade mágica, tribal ou coletivista – comparável a um organismo – denomino sociedade fechada; e sociedade democrática à sociedade em que os indivíduos são confrontados com decisões pessoais.

A transição de uma sociedade fechada para a aberta constitui uma das mais profundas revoluções por que passou a humanidade. Essa revolução não foi feita conscientemente, nem isenta de perigos. Gerou tentativas de manter o tribalismo pela força; mas também levou à grande revolução espiritual, à invenção da discussão crítica e ao pensamento liberto de obsessões mágicas.

A Grande Geração que viveu em Atenas na época da Guerra do Peloponeso formulou os princípios da igualdade perante a lei e do individualismo político. Enfatizou também que o idioma, os costumes e a lei não têm o caráter mágico de tabus – são instituições humanas, convencionais. E insistiu que somos responsáveis por essas instituições, que devemos ter fé na razão humana, ao mesmo tempo resguardando-nos do dogmatismo: em outras palavras, que é crítico o espírito da ciência. O surgimento da própria filosofia foi uma resposta à queda da sociedade fechada e de suas crenças mágicas. Uma tentativa de substituir a perdida fé mágica por uma fé racional; modificou a tradição de transmitir uma teoria ou um mito, fundando uma tradição nova: a de desafiar teorias e mitos e de discuti-los criticamente.

Em contraste, o sonho de Platão – da unidade, da beleza e perfeição, o esteticismo, o holismo e o coletivismo – é tanto produto quanto sintoma da perda do espírito de grupo do tribalismo. É a expressão dos sentimentos dos que sofrem da tensão da civilização – nos tornamos dolorosamente conscientes das grandes imperfeições de nossa vida, das imperfeições pessoais e institucionais, do sofrimento evitável. Essa consciência aumenta a tensão da responsabilidade pessoal, de carregar a cruz de ser humano.

A lição que devemos aprender de Platão é exatamente a oposta à que ele tenta nos ensinar. A despeito da excelência do diagnóstico sociológico, sua terapêutica é pior que o mal que tentava combater. Deter a mudança política não é o remédio; não pode trazer a felicidade. Uma vez que comecemos a confiar em nossa razão e sintamos o apelo das responsabilidades pessoais e, com estas, a responsabilidade de promover o conhecimento, não podemos retornar ao estado de submissão na magia tribal. Não há volta possível a um estado harmonioso da natureza. Se voltarmos, deveremos refazer o caminho integral – devemos retornar às feras.

AS RAÍZES ARISTOTÉLICAS DO HEGELIANISMO

Para Aristóteles, uma das causas de qualquer coisa, movimento ou mudança, é a finalidade a que tende o movimento. O Bem pode estar tanto no ponto de partida do movimento como em seu fim: a Forma ou essência de qualquer coisa em movimento torna-se idêntica ao estado final para o qual tende. A Forma ou Idéia, que é o Bem, fica no fim, em vez de estar no princípio – o otimismo substitui o pessimismo. As Idéias não mais existem separadas das coisas sensíveis: a Forma está na coisa. Toda mudança significa a realização de algumas das potencialidades inerentes à essência da coisa – sua fonte interna de mudança ou movimento.

Três doutrinas historicistas originam-se do essencialismo de Aristóteles: 1) Somente através da história de um Estado podemos conhecer sua “essência oculta e não desenvolvida”. Essa doutrina levou ao princípio de que só podemos conhecer entidades sociais aplicando-lhes o método histórico, estudando as mutações sociais. 2) Só a mudança pode tornar aparente a essência e as potencialidades que desde o princípio eram inerentes ao objeto em mutação. Essa doutrina levou à noção historicista de um destino histórico, essencial, do qual não se pode fugir. 3) A fim de tornar-se real, a essência deve desdobrar-se na mudança.

Aristóteles distingue conhecimento de opinião. O conhecimento, ou ciência, pode ser de duas espécies: demonstrativo ou intuitivo. O conhecimento demonstrativo é o conhecimento das “causas”. O conhecimento intuitivo consiste na apreensão da essência de uma coisa; é a fonte originadora de toda ciência, já que apreende as premissas básicas de todas as demonstrações. O ideal aristotélico do conhecimento perfeito consiste na compilação dessas definições intuitivas de todas as essências; o progresso do conhecimento consiste na gradual acumulação de definições.

Essa concepção essencialista contrasta com os métodos da ciência moderna. Embora em ciência façamos o melhor para encontrar a verdade, nunca temos segurança de havê-la alcançado. Aprendemos, de muitas decepções, que não podemos esperar uma finalidade; a não nos decepcionarmos se nossas teorias científicas forem refutadas, pois podemos, na maioria dos casos, verificar com grande confiança qual de duas teorias é a melhor. Podemos saber se estamos fazendo progresso; é esse conhecimento que nos consola da perda da ilusão de finalidade e certeza. Sabemos que nossas teorias científicas devem sempre permanecer como hipóteses. Se forem distintas, levarão a predições diferentes, que podem ser falsificadas; à base da experimentação, podemos verificar se a nova teoria leva a resultados mais satisfatórios que a anterior. Em nossa busca da verdade, substituímos a certeza científica pelo progresso científico.

Essa concepção do método científico é ratificada pelo progresso da ciência, que não se desenvolveu como pensava Aristóteles, mas por um método muito mais revolucionário: progredimos pela proposição de idéias e teorias novas, e pelo abandono das antigas. Em ciência não há “conhecimento” no sentido que Platão e Aristóteles entendiam essa palavra, que implica finalidade. Em ciência, nunca temos razão suficiente para acreditar que atingimos a verdade. A concepção essencialista é simplesmente insustentável e incompatível com a ciência.

HEGEL E O NOVO TRIBALISMO

Hegel, a fonte de todo o historicismo contemporâneo, foi um seguidor direto de Heráclito, Platão e Aristóteles, o “elo perdido”, por assim dizer, entre Platão e a forma moderna de totalitarismo, que adora o Estado, a História e a Nação. A doutrina hegeliana afirma que o Estado é tudo, e o indivíduo, nada. Com Aristóteles, Hegel acredita que as Idéias são idênticas a coisas em fluxo. Estas não tendem a se afastar da Idéia, em direção à decadência; como Espeusipo e Aristóteles, a tendência é na direção contrária, para a Idéia. As próprias essências se desenvolvem, em oposição a Platão, que originalmente as introduziu para obter um ponto fixo estável.

O historicismo de Hegel é otimista. Seu mundo em fluxo é um estado de “evolução criativa”; cada uma de suas etapas contém as precedentes, das quais se origina; e cada etapa supera todas as etapas anteriores, aproximando-se cada vez mais da perfeição. A lei geral do desenvolvimento é, assim, a do progresso.

O coletivista Hegel, como Platão, visualiza o Estado como um organismo, dotado de uma “vontade geral” coletiva rousseauniana – sua essência consciente e pensadora, sua “razão”. Esse “Espírito”, cuja “própria essência é a atividade”, é também o coletivo Espírito da Nação que forma o Estado. Conhecemos sua essência e suas “potencialidades” pelo conhecimento de sua “efetiva” história, ou melhor, através da história do seu “Espírito”.

O primeiro pilar da filosofia hegeliana é o método dialético. Como Heráclito, Hegel acredita na identidade dos opostos e sua permanente tensão. É da própria natureza da razão que se contradiga; não é uma fraqueza das faculdades humanas, mas a essência de toda racionalidade o fato de que esta opera dialeticamente com contradições e antinomias, já que é desse modo que a razão (e a ciência) se desenvolve: não somente as contradições são admissíveis, como inevitáveis e desejáveis. A própria razão é o produto da herança social e do desenvolvimento histórico dialético da Nação.

O segundo dos pilares do hegelianismo é a denominada filosofia da identidade, ela própria uma aplicação da dialética. O elo entre a dialética de Hegel e sua filosofia da identidade é a doutrina de Heráclito sobre a unidade dos opostos. Hegel adota, da doutrina de Platão, a equação Ideal = Real. Da dialética de Kant, Hegel aceita serem as Idéias algo mental, algo espiritual ou racional, o que pode expressar-se pela equação Idéia = Razão. Combinadas, essas duas equações, ou equívocos, dão-nos Real = Razão. Isso permite a Hegel afirmar que tudo que é razoável deve ser real, e tudo que é real deve ser razoável; o desenvolvimento da realidade é o mesmo da razão. E como não pode existir padrão mais alto do que o último desenvolvimento da Razão e da Idéia, tudo o que agora existe, existe por necessidade, e deve ser razoável e bom.

A filosofia da identidade, afora seu positivismo ético, implica como subproduto uma teoria da verdade: tudo que é razoável é real e, portanto, deve ser verdadeiro. A verdade se desenvolve do mesmo modo que a razão, e tudo quanto apela para a razão na sua última etapa de desenvolvimento deve também ser verdadeiro para essa etapa. A evidência, por si mesma, é o mesmo que a verdade. Desse modo, a oposição entre o que Hegel chama o “Subjetivo”, a crença, e o “Objetivo”, a verdade, transforma-se numa identidade; e essa unidade dos opostos explica também o conhecimento científico.

O DETERMINISMO SOCIOLÓGICO DE MARX

O interesse de Marx pela ciência social e pela filosofia social era fundamentalmente prático; ele via no conhecimento um meio de promover o progresso da humanidade. Apesar de seus méritos, creio que Marx foi um falso profeta do curso da história; suas profecias não se materializaram; pior, induziu muitos à crença de que a profecia histórica é o modo científico de abordar os problemas sociais. Marx é responsável pela devastadora influência do método historicista nas fileiras dos que desejam impulsionar a causa da sociedade democrática.

O marxismo é uma teoria puramente histórica, que visa predizer o curso futuro dos eventos econômicos e do poder político, e especialmente as revoluções. Marx rejeitou qualquer tipo de mecânica social, que denunciou como utópicas e ilegítimas. Como Lênin admite, dificilmente se encontra na obra de Marx uma palavra sobre a economia socialista, à exceção de lemas inúteis como “de cada um segundo sua capacidade e a cada um segundo suas necessidades”.

Marx considerou sua missão liberar o socialismo do fundo sentimental, moralista e visionário. O socialismo devia passar da etapa utópica para a científica; devia basear-se no método científico de analisar causa e efeito, e na predição científica. Como admitiu que a predição no campo social é idêntica à profecia histórica, o socialismo científico deveria basear-se em um estudo das causas e dos efeitos históricos, e na profecia de seu próprio advento.

Creio ser inteiramente correta a afirmação de que o marxismo é, fundamentalmente, um método. Como tal, o marxismo deve ser submetido à prova e criticado por padrões metodológicos. Deve-se indagar se, como método, tem ou não capacidade de impulsionar a tarefa da ciência. Os padrões pelos quais devemos julgar o método marxista devem ser, portanto, de natureza prática.

A ênfase sobre a predição científica é em si mesma uma descoberta metodológica importante. Contudo, o argumento plausível de que a ciência só pode predizer o futuro se este for predeterminado levou Marx a aderir à falsa crença de que o método científico deve estar baseado num determinismo rígido. A crença de que os termos “científico” e “determinista” estão inseparavelmente ligados persiste ainda como uma superstição, reminiscência de um tempo que ainda não passou de todo.

Não há razão para acreditar que, dentre todas as ciências, a ciência social seja capaz de revelar o que o futuro nos reserva. Essa crença na adivinhação científica não se fundamenta só no determinismo; sua outra base é a confusão entre predição científica, como a que conhecemos da física ou da astronomia, e profecia histórica de longo prazo, que prenuncia as principais tendências do desenvolvimento futuro da sociedade. Essas duas espécies de predição são muito diferentes, e o caráter científico da primeira não é de argumento em favor do caráter científico da segunda.

A AUTONOMIA DA SOCIOLOGIA

Marx opôs-se ao “idealismo” hegeliano em seu famoso epigrama: “Não é a consciência do homem que determina sua existência; é sua existência social que determina sua consciência”. Trata-se da antiqüíssima distinção entre leis sociais “naturais” e “convencionais”.

É ingênuo admitir que todas as leis sociais derivem da psicologia da “natureza humana”. Contra o psicologismo – a doutrina plausível de que todas as leis da vida social podem ser redutíveis às leis psicológicas da “natureza humana” – os defensores de uma sociologia autônoma opõem concepções institucionalistas. Nenhuma ação humana pode ser explicada só por motivos psicológicos ou behavioristas: se estes forem ser usados na explicação, deverão ser suplementados por uma referência ao ambiente social; nossas ações não podem ser explicadas sem referência às instituições sociais e à sua maneira de funcionamento.

As mentes humanas – as necessidades, as esperanças, os temores e as expectativas, os motivos e as aspirações dos indivíduos humanos – são o produto da vida em sociedade. A estrutura de nosso ambiente social é feita pelo homem, no sentido que as suas instituições e tradições não são obra de Deus nem da natureza, mas resultam das ações e decisões humanas. Isso não implica que todas tenham objetivos conscientes. Mesmo aquelas que emergem como resultados de ações humanas conscientes e intencionais são, muitas vezes, os subprodutos indiretos, involuntários e indesejados de outras ações. A maioria das poucas instituições bem-sucedidas e intencionalmente criadas não se concretizou conforme o planejado, em razão de repercussões sociais involuntárias. É que essa criação não somente afeta muitas outras instituições sociais, mas também a “natureza humana” de todos os membros da sociedade. Se essas observações se aplicam mais à sociedade fechada, em que o planejamento consciente das instituições é um acontecimento excepcionalíssimo, mesmo hoje haverá muitas repercussões que não podemos prever. Uma das conseqüências disso é que os valores morais da sociedade – as exigências e proposições reconhecidas por todos ou por quase todos os seus membros – se ligam muito de perto a suas tradições e instituições, sem as quais esses valores não podem sobreviver.

Talvez a crítica mais importante do psicologismo é a de que ele deixa de entender a tarefa principal das ciências sociais. Essa tarefa não é, como crê o historicista, a de profetizar o curso futuro da história. É a de descobrir e explicar os reflexos menos evidentes da ação humana e das dificuldades que se antepõem no caminho da ação social – o estudo, por assim dizer, da densidade, da fragilidade ou da elasticidade da matéria social, e de sua resistência a nossas tentativas de moldá-la. A vida social não é apenas uma prova de resistência entre grupos opostos – é ação dentro de um quadro mais ou menos flexível ou frágil de instituições e tradições, e determina não só reações conscientes, mas também reações imprevistas, algumas das quais imprevisíveis.

Tentar entender essas reações até onde seja possível é a principal tarefa das ciências sociais: analisar as repercussões involuntárias das ações humanas intencionais, negligenciadas pelo psicologismo.

O HISTORICISMO ECONÔMICO

Muitos pensam que a essência do marxismo é a doutrina de que os motivos econômicos e os interesses de classe são as forças impulsionadoras da história – o “materialismo histórico”. Aos que assim pensam denominei “Marxistas Vulgares”. Essa opinião tem pouquíssimo a ver com o “materialismo histórico”.

O historicismo econômico de Marx decorre do que chamei de dualismo na vida prática de Marx, e de seu determinismo metodológico. Com Hegel, pensa que a liberdade é o alvo do desenvolvimento histórico; e identifica o domínio da liberdade na vida mental. Mas reconhece que não somos seres puramente espirituais, não somos totalmente livres, nem capazes de jamais alcançar a plena liberdade; seremos sempre incapazes de emancipar-nos das necessidades. O máximo que podemos fazer é tornar as condições de trabalho mais dignas e reduzir a sua servidão, para que possamos todos ser livres durante certas partes de nossa vida. Creio ser esta a parte central da “concepção de vida” de Marx.

Para Marx, as relações sociais somente têm significado histórico e científico na medida em que se prendam ao processo produtivo. Os pensamentos e as idéias são tratados como “superestruturas ideológicas sobre a base das condições econômicas”. Em oposição a Hegel, ele sustentou que a chave da história das idéias está nas relações entre o homem e o meio natural que o circunda, sua vida econômica, e não em sua vida espiritual. Esta é a razão por que podemos qualificar de economismo o timbre historicista de Marx, diferentemente do idealismo de Hegel ou do psicologismo de Mill. A influência do que chamei dualismo de Marx e do seu determinismo científico sobre a concepção da história é clara: sua tarefa central é explicar o desenvolvimento das condições de produção.

Há dois aspectos a criticar do “materialismo histórico” de Marx. O primeiro é o historicismo: o escopo das ciências sociais coincide com o método e com a profecia históricos. O segundo é o economismo (ou “materialismo”) – a organização econômica da sociedade é fundamental para todas as instituições sociais e especialmente para seu desenvolvimento histórico.

Aperfeiçoando Hegel, Marx identifica a “realidade” com o mundo material, e a “aparência” com o mundo dos pensamentos: estes seriam explicados pela sua redução à subjacente realidade essencial, às condições econômicas. Essa concepção filosófica é uma forma de essencialismo. No campo do método resulta em uma superestimação do economismo.

É inútil esperar que qualquer mudança importante possa ser realizada por meios legais ou políticos; uma revolução política só substitui um grupo de governantes por outro. Só a evolução da essência subjacente, a realidade econômica, pode produzir qualquer mudança real ou essencial – uma revolução social. Esta ocorre quando as condições materiais de produção amadurecem e entram em conflito com as instituições sociais e legais, rompendo-as.

A “interpretação materialista da história” de Marx não pode ser levada demasiado a sério; devemos encará-la como nada mais que uma sugestão para que consideremos as coisas em relação a seu fundo econômico.

AS CLASSES

Como se relaciona a guerra de classes com a doutrina institucionalista da autonomia da sociologia? À primeira vista pode parecer que as duas doutrinas estão em aberto conflito: na luta de classes, o interesse de classe é aparentemente uma espécie de motivo (psicológico). Para Marx, contudo, o interesse de uma classe é simplesmente tudo o que promova o seu poder ou a sua prosperidade. Nesse sentido institucional, o “objetivo” exerce decisiva influência sobre as mentes humanas, determinando sua consciência.

Só podemos ser livres se nos emancipamos do processo produtivo. Só podemos adquirir maior liberdade à custa da divisão da humanidade em classes; a classe governante adquire liberdade à custa da classe governada. Por seu turno, os membros da classe governante são obrigados a oprimir e a combater a massa governada, se quiserem conservar sua própria liberdade e situação social. Os governantes se acham presos à sua posição de classe; não podem escapar da relação social com os súditos e estão presos a eles. Governantes e governados são obrigados a lutar entre si. É esse vínculo que coloca sua luta ao alcance do método e da profecia histórica científicos, e que possibilita tratar cientificamente a história da sociedade como a história da luta de classes.

Os sistemas sociais, ou sistemas de classe, mudam com as condições de produção, já que dessas condições depende o modo pelo qual os governantes podem explorar e combater os governados. A cada período particular de desenvolvimento econômico corresponde um sistema social; mas em qualquer deles as relações de classe que caracterizam o sistema social independem da vontade do homem individual.

Embora tenha uma espécie de lógica própria, o sistema social opera cegamente. Os que são capturados por seu mecanismo não podem prever as repercussões de suas ações nem podem enfrentá-lo. A mecânica social é impossível e inútil porque a cadeia causal de dependência nos ata ao sistema social, e não o inverso. Não podemos impor nossos interesses ao sistema social; ele força-nos a agir de acordo com o nosso interesse de classe. É inútil culpar o indivíduo “capitalista” pela injustiça, pois é o próprio sistema que força o capitalista a agir como age. E também é vão esperar que as circunstâncias possam ser melhoradas através da melhoria dos homens; ao contrário, os homens serão melhores se for melhor o sistema em que viverem.

O sistema social determina também os pensamentos, pois são, em parte instrumentos dos atos e, em parte um importante tipo de ação social; seu objetivo imediato é o de influir sobre os atos dos demais membros da sociedade. O sistema social e o “interesse objetivo” de uma classe se tornam conscientes nas mentes subjetivas de seus membros (no jargão hegeliano). A luta de classes é o meio pelo qual isso se realiza. Ao “desenvolver as forças da produtividade social e criar as condições materiais de produção que formam a base material de um tipo superior de sociedade”, todas as classes desempenham seu papel no palco da história e promovem a vinda final do socialismo.

A fórmula “toda história é uma história de luta de classes” é muito valiosa como sugestão para visualizarmos o importante papel desempenhado pela luta de classes no poder político; essa sugestão é tão valiosa quanto a brilhante análise de Platão sobre o papel desempenhado pela luta de classes nas cidades-Estados gregas. Contudo, a divergência de interesses dentro de uma mesma classe – seja governante ou governada – alcança tal magnitude que a teoria marxista das classes é uma perigosa simplificação dos fatos. Um dos grandes temas da história medieval, a luta entre Papas e Imperadores, é um exemplo da dissensão no interior da classe que governa.

Um dos perigos da fórmula de Marx é que, se levada por demais a sério, induz erroneamente os marxistas a interpretarem todos os conflitos como lutas entre exploradores e explorados. Por outro lado, seu emprego da “lógica da situação de classe” para explicar o funcionamento das instituições do sistema social parece-me admirável, apesar de certos exageros e do esquecimento de alguns importantes aspectos da situação; admirável, pelo menos, como uma análise sociológica daquela etapa do sistema industrial que Marx tem em mente, o “capitalismo irrestrito” de cem anos atrás.

O SISTEMA LEGAL E SOCIAL

Provavelmente o ponto mais crucial de nossa análise e de nossa crítica do marxismo é a teoria do Estado de Marx e – por paradoxal que isso possa parecer – da impotência da política.

Para Marx, o sistema de instituições legais impostas pelo Estado é uma das superestruturas erigidas sobre as forças produtivas do sistema econômico, e que lhes dão expressão. Trata-se de uma teoria parcialmente institucional e parcialmente essencialista. É institucional até o ponto em que Marx analisa as funções práticas que as instituições legais têm na vida social. Mas é essencialista porque Marx não analisa a variedade dos fins a que servem essas instituições, nem sugere as reformas institucionais necessárias para atingir os fins desejados pelo Estado. Em vez disso, Marx indaga: “Que é o Estado?”, qual a função essencial das instituições legais? Uma questão tipicamente essencialista como essa não pode ter resposta satisfatória, conquanto seja consistente com a concepção essencialista e metafísica de Marx: o campo das idéias e das normas é a aparência de uma realidade econômica subjacente.

A mais importante conseqüência dessa teoria do Estado é que as instituições legais e as lutas políticas são impotentes: nunca podem alterar decisivamente a realidade econômica. A única função da atividade política é zelar para que as modificações do arcabouço jurídico-político reflitam as mudanças operadas na realidade social – nos meios de produção e nas relações entre as classes.

Todo governo, mesmo o governo democrático, é uma ditadura da classe governante sobre os governados. E como o Estado, sob o capitalismo, é uma ditadura da burguesia, após a revolução social ele será inicialmente uma ditadura do proletariado. Mas esse Estado proletário deve logo perder sua função, já que a revolução proletária leva à sociedade de uma classe, vale dizer, a uma sociedade sem classes, em que não pode haver ditadura de classe. O Estado, privado de qualquer função, deve desaparecer.

Quanto à liberdade, Marx distingue (em linguagem hegeliana) entre liberdade formal e material. O que importa é a liberdade econômica ou material, que só pode ser alcançada pela emancipação da servidão.

Que temos a dizer da análise de Marx? A injustiça e a desumanidade do “capitalista irrestrito” descrito por Marx não podem ser contestadas; mas podem ser interpretadas pelo que denominei o paradoxo da liberdade. A liberdade ilimitada é suicida. Implica que o forte é livre para agredir o fraco e roubar sua liberdade. Por essa razão exigimos que a liberdade de cada um seja protegida pela lei. O mesmo aplica-se ao domínio econômico. A liberdade econômica ilimitada pode ser tão suicida quanto a liberdade física ilimitada; quando o poder coercitivo do Estado se limita a garantir a lei que suprime a violência (e protege a propriedade), uma minoria economicamente forte pode explorar a maioria dos economicamente fracos.

Devemos construir instituições sociais, garantidas pelo poder coercitivo do Estado, para assegurar a liberdade – inclusive a dos economicamente fracos. Este é o ponto central de nossa análise. Apenas aqui começamos a compreender o significado do choque entre o historicismo e a mecânica social, e seus efeitos sobre os que amam a liberdade. Para a mecânica social o poder político é fundamental, já que pode controlar o poder econômico. A “simples liberdade formal”, a democracia, é o único instrumento conhecido para proteger-nos contra o mau uso do poder; é o controle dos governantes pelos governados. Os marxistas não levam em conta a “liberdade formal”, desejando suplantá-la pela “democracia econômica”. Esquecem que a “liberdade meramente formal” é a única garantia de uma política econômica democrática.

O dogma de que o poder econômico está na raiz de todo mal deve ser repelido: qualquer forma de poder não controlado é perigoso. O controle do poder permanece o problema central da política. Esse controle é obtido pela “liberdade formal”, pelas instituições que numa democracia exercem o controle democrático do poder econômico. Construir essa espécie de mecânica social é tarefa nossa, está ao nosso alcance e não devemos esperar por terremotos econômicos que miraculosamente produzam um novo mundo econômico, de modo que nossa única tarefa seja desvendá-lo e remover a velha capa política.

Na prática, os marxistas nunca confiaram na teoria da impotência do poder político, nem consideraram o problema mais fundamental de toda política: o controle do controlador. Nunca atentaram que a democracia é o único meio conhecido de se conseguir tal controle.

A intervenção econômica, mesmo os métodos graduais aqui defendidos, tenderá a aumentar o poder coercitivo do Estado. Contudo, este não é argumento decisivo contra ela; o poder do Estado é sempre um mal, ainda que necessário. Mas é uma advertência de que, se relaxarmos nossa vigilância, se não fortalecermos nossas instituições democráticas, se dermos maior poder ao Estado para um “planejamento” intervencionista, arriscamos perder nossa liberdade. Só a liberdade pode tornar segura a segurança.

Tais considerações nos remetem à nossa defesa dos métodos graduais de mecânica social, por oposição aos utópicos e holísticos; e à exigência de que as medidas sejam concebidas para combater males concretos, e não para estabelecer algum Bem ideal. A intervenção do Estado deve ser limitada ao necessário à defesa da liberdade. Para tal, toda política democrática de longo prazo deve ser concebida em termos de instituições impessoais. Mais especificamente, o problema de controlar os governantes e de equilibrar seus poderes é um problema institucional: o de criar instituições para impedir que mesmo maus governantes causem demasiado dano. Podemos agora distinguir entre os dois métodos de intervenção do Estado. O primeiro – a intervenção “institucional” ou “indireta” – dá-se sob um “arcabouço legal” de instituições protetoras (da liberdade). O segundo – a intervenção “pessoal” ou “direta” – fortalece os órgãos do Estado para atuar, dentro de certos limites, da forma necessária a atingir seus fins. Toda intervenção democrática utiliza o primeiro método sempre que possível e restringe o uso do segundo aos casos em que o primeiro se mostrar inadequado.

Do ponto de vista da mecânica social gradual, a diferença entre ambos os métodos é de suma importância. Somente o método institucional torna possível ajustamentos à luz da discussão e da experiência. Só ele permite a aplicação do método da tentativa e erro a nossas ações políticas. É de longo prazo; muda o permanente arcabouço institucional vagarosamente, para contemplar conseqüências imprevistas e indesejadas em outras partes do arcabouço. Só ele permite avaliar, pela experiência e pela análise, o que efetivamente estamos fazendo quando intervimos com certo alvo em mente. As decisões discricionárias dos governantes e burocratas não incluem esses métodos racionais. São decisões a curto prazo, transitórias e mutáveis.

Mas não é só nesse sentido que o primeiro método pode ser descrito como racional e o segundo como irracional. O cidadão individual tem conhecimento do arcabouço legal. Seu funcionamento é previsível e introduz um fator de segurança e certeza na vida social.

O método da intervenção pessoal introduz um elemento de crescente imprevisibilidade e induz um sentimento de que a vida social é irracional e insegura. O uso de poderes discricionários tende a crescer rapidamente, uma vez que se torne um método aceito; e decisões discricionárias de curto prazo dificilmente poderão ser efetuadas por mudanças institucionais. Essa tendência aumenta a irracionalidade do sistema, criando em muitos a impressão de que há por trás da cena poderes ocultos, tornando-os suscetíveis à teoria conspiratória da sociedade, com todas as suas conseqüências: caçadas às heresias e hostilidade nacional, social e de classe.

O ADVENTO DO SOCIALISMO

De acordo com Marx, todo sistema econômico deve destruir a si mesmo, porque cria as forças que produzem o período histórico seguinte. De acordo com o seu método, as força fundamentais que destruirão o capitalismo devem ser identificadas na evolução dos meios materiais de produção. Uma vez descobertas essas forças fundamentais, é possível traçar-lhes a influência sobre as relações sociais entre as classes bem como sobre os sistemas político e jurídico.

O Capital elabora apenas o que chamarei “primeiro passo” dessa argumentação, a análise das forças econômicas fundamentais do capitalismo e suas influências sobre as relações de classe. O “segundo passo”, que leva à conclusão de ser inevitável uma revolução social, e o “terceiro passo”, que conduz à predição da emergência de uma sociedade sem classes – socialista – apenas são esboçados.

No primeiro passo de sua argumentação, Marx analisa o método de produção capitalista. Detecta uma tendência ao aumento da produtividade do trabalho, relacionada com os aperfeiçoamentos técnicos e com a acumulação crescente dos meios de produção. Essa tendência leva à concentração cada vez maior da riqueza nas mãos da burguesia e ao aumento da miséria dos trabalhadores.

No segundo passo da argumentação se extraem duas conclusões: primeiro, todas as classes, exceto uma burguesia governante pequena e uma grande classe trabalhadora explorada, estão fadadas a desaparecer; segundo, a crescente tensão entre as duas classes deve levar a uma revolução social.

No terceiro passo, ocorre a vitória dos trabalhadores sobre a burguesia: resulta a sociedade de uma só classe, portanto uma sociedade sem classes e sem exploração – o socialismo.

Começo por discutir o terceiro passo, a profecia final do advento do socialismo. Suas principais premissas são: 1) o desenvolvimento do capitalismo conduz à eliminação de todas as classes, exceto duas, uma burguesia pequena e um imenso proletariado; 2) o crescimento da miséria força o proletariado a rebelar-se. As conclusões são: os trabalhadores ganharão a luta; eliminada a burguesia, estabelecerão uma sociedade sem classes.

A primeira conclusão decorre das premissas. Procede, porém, a segunda conclusão? Creio que não. Do fato de que de duas classes só uma permaneça, não se segue que haverá uma sociedade sem classes. As classes não são como indivíduos, ainda que admitamos que se comportem quase como indivíduos enquanto houver duas classes. A unidade ou solidariedade de uma classe é parte de sua consciência de classe, que por sua vez é produto da luta de classes. Não há razão para que os indivíduos que formam o proletariado mantenham a unidade de classe uma vez cessada a pressão da luta contra a classe inimiga comum. Portanto, a profecia do advento de uma sociedade sem classes não decorre das premissas. O terceiro passo do argumento marxista permanece inconclusivo.

A REVOLUÇÃO SOCIAL

O segundo passo da argumentação profética de Marx tem como principal premissa que o capitalismo deve aumentar a riqueza e a miséria. As conclusões extraídas da premissa podem ser divididas em duas partes. A primeira é uma profecia referente ao desenvolvimento da estrutura de classes do capitalismo. Afirma que todas as classes fora da burguesia e do proletariado, em particular a classe média, estão fadadas a desaparecer, e que, em conseqüência da crescente tensão entre a burguesia e o proletariado, o último se tornará cada vez mais unido e consciente de sua classe. A segunda é a profecia de que essa tensão não pode ser evitada e levará a uma revolução social proletária.

Creio que nenhuma das duas conclusões decorre da premissa: os argumentos de Marx ignoram um grande número de desenvolvimentos possíveis. Por admiráveis que sejam as observações de Marx, a primeira conclusão é defeituosa. Depende da unidade dos trabalhadores em um todo com consciência de classe. Em oposição à profecia de Marx, as seguintes estruturas de classe poderão se desenvolver segundo suas próprias suposições: burguesia; grandes proprietários de terras; outros proprietários de terras; trabalhadores rurais; nova classe média; trabalhadores industriais; lumpenproletários. Um desenvolvimento desse tipo pode minar a unidade dos trabalhadores industriais. Portanto, a primeira conclusão do segundo passo da argumentação não procede necessariamente – o que não quer dizer que não poderá ocorrer. Isso afeta a segunda conclusão, a profecia da vindoura revolução social.

A “revolução social do proletariado” de Marx é um conceito histórico. Denota a transição mais ou menos rápida do período histórico do capitalismo para o socialismo, sem implicar necessariamente em uma transformação violenta. A característica essencial da “revolução social” é alcançar o resultado – o socialismo.

Somente se admitirmos que “os proletários não têm nada a perder, exceto seus grilhões”, e somente se considerarmos a lei da miséria crescente como válida, poderemos profetizar que os trabalhadores serão forçados a tentar derrubar o sistema. Uma interpretação evolucionária alternativa da “revolução social” destrói todo o argumento marxista, do primeiro ao último passo; resta do marxismo somente o historicismo. Contudo, as ambigüidades com relação à violência e à conquista do poder que observamos nos partidos marxistas têm conseqüências. Em particular, a ambigüidade da violência, decorrente do historicismo vago e da teoria marxista do Estado, representa grave ameaça à democracia. Esta só pode funcionar se os principais partidos políticos aderirem a um conjunto de regras: 1) A democracia não é somente o governo da maioria, já que a maioria pode governar de maneira tirânica. Numa democracia os poderes do governo devem ser limitados e deve ser possível mudar o governo sem derramamento de sangue. O governo que não salvaguarda as instituições que asseguram à minoria a possibilidade de trabalhar por uma mudança pacífica é uma tirania. 2) Basta distinguir apenas entre duas formas de governo, as que possuem instituições desse tipo e todas as demais, isto é, democracias e tiranias. 3) Uma constituição democrática consistente exclui apenas um tipo de mudança no sistema legal – a que põe em risco seu caráter democrático. 4) A ampla proteção às minorias não se estende aos que violam a lei nem aos que incitam à derrubada violenta da democracia. 5) Formar instituições para salvaguardar a democracia pressupõe tendências antidemocráticas entre governantes e governados. 6) Se a democracia for destruída todos os direitos serão destruídos. 7) A democracia é o único caminho para qualquer reforma, já que permite a reforma sem violência.

Em contraste com a democracia, a política dos partidos marxistas induz os trabalhadores a suspeitarem da democracia e culpá-la por todos os males que ela não consegue impedir; leva os governantes a considerar o Estado como seu, não dos governados; e a dizer-lhes que só há um meio de melhorar as coisas, o da completa conquista do poder. Esquecem que a democracia só é importante porque controla e equilibra o poder. Tal política tem como único resultado realizar a obra dos inimigos da sociedade democrática.

Em última análise, são essas as conseqüências do modo com que Platão suscitou o problema da política, perguntando: “Quem deve governar o Estado?” Já é tempo de aprendermos que as indagações corretas devem ser “como é exercido o poder?” e “quanto poder é exercido?” Devemos aprender que todos os problemas políticos são institucionais, mais do arcabouço legal que de pessoas, e que o progresso no rumo de maior igualdade só pode ser salvaguardado pelo controle institucional do poder.

O CAPITALISMO E SEU DESTINO

Marx acredita que a competição força os capitalistas a acumular capital, contrariando seus próprios interesses a longo prazo, já que a acumulação leva a uma queda na rentabilidade do capital. Contudo, embora contrariando seus interesses, trabalham inconscientemente na direção do desenvolvimento histórico, do progresso e do socialismo. Isso se deve a que a acumulação de capital implica: produtividade crescente; aumento da riqueza e sua concentração; e aumento da miséria. O excesso de trabalhadores – o “exército industrial de reserva” – mantém os salários no nível mais baixo possível. O ciclo de negócios impede a absorção permanente desse excesso pela indústria crescente. Isso não pode se alterado, ainda que os capitalistas o desejem, pois a queda proporcional de seus lucros torna sua posição econômica por demais precária para qualquer ação: a acumulação capitalista torna-se um processo suicida e auto-contraditório, que impulsiona o progresso técnico, econômico e histórico na direção do socialismo.

As premissas do “primeiro passo” são as leis marxistas da competição e da acumulação dos meios de produção. A conclusão é a lei da riqueza e da miséria crescentes.

Competição, acumulação e produtividade crescente, de acordo com Marx, indicam as tendências fundamentais, as premissas, de toda produção capitalista – “as leis da competição e da acumulação dos meios de produção”. Concentração dos meios de produção e centralização do capital fazem parte da conclusão. A lei da “miséria crescente” é a conclusão decisiva do primeiro passo.

Marx não sustenta que os lucros diminuam com a acumulação de capital, apenas que o capital acumulado cresce mais rapidamente que os lucros: em linguagem atual, a rentabilidade do capital investido decresce. Isso não implica pressão sobre os capitalistas, que a devam necessariamente transmitir aos trabalhadores; ou que inviabilizem qualquer negociação entre as partes para dividir em alguma proporção o excedente criado pelo crescimento da produtividade. A miséria nos países capitalistas mais avançados de seu tempo decorreu do que Marx conhecia muito bem: o excesso de oferta de trabalho em relação à demanda mantinha baixos os salários; a redução da oferta, propiciada pela progressiva eliminação do trabalho infantil, da limitação da jornada de trabalho e pela redução da taxa de crescimento da população desmentiu a profecia. Como bem resumiu Parkes, “salários baixos, horas prolongadas de trabalho e trabalho infantil foram uma característica do capitalismo, não como disse Marx, em sua velhice, mas na sua infância”.

UMA AVALIAÇÃO DA PROFECIA

Os argumentos que alicerçam a profecia histórica de Marx não são válidos. Sua engenhosa tentativa de extrair conclusões proféticas da observação de tendências econômicas falhou. A razão desse fracasso não está em qualquer insuficiência da base empírica da argumentação. As análises sociológicas e econômicas que Marx fez da sociedade de sua época podem ter sido um tanto parciais, mas, a despeito de seu viés, foram excelentes como descrição. A razão de seu fracasso repousa inteiramente na pobreza do historicismo como tal, no simples fato de que, mesmo que observemos hoje o que parece ser uma tendência ou linha histórica, não poderemos saber se amanhã ela permanecerá a mesma.

Como estou criticando Marx e, até certo ponto, louvando o intervencionismo gradual democrático, quero deixar claro que sinto muita simpatia pela esperança de Marx quanto ao decréscimo da influência do Estado. O maior perigo do intervencionismo – especialmente de qualquer intervenção direta – é o de aumentar o poder do Estado e da burocracia. Dominá-lo cedo é um problema para a mecânica social gradual, por constituir um perigo para a democracia.

Em face das profecias bem-sucedidas de Marx quanto às tendências à acumulação dos meios de produção e do crescimento da produtividade do trabalho, será justificável falar da pobreza do historicismo? Um exame cuidadoso desses resultados mostra que eles não decorreram de seu método historicista, mas dos métodos da análise institucional. Não foi uma análise historicista que o levou a concluir que os capitalistas se vêem forçados pela competição a aumentar a produtividade; mesmo a teoria da luta de classes é institucional. Em parte alguma as “leis do desenvolvimento histórico” desempenham qualquer papel; Marx apenas teve êxito enquanto analisou instituições e suas funções. E o contrário também é verdadeiro: nenhuma de suas mais ambiciosas e abrangentes profecias históricas resultou da análise institucional. Os resultados de sua análise não são válidos quando apoiou-se na análise historicista. Marx compartilha da crença do industrial progressista, do “burguês” de sua época, numa lei do progresso. Mas esse ingênuo otimismo historicista, de Hegel e Comte, de Marx e de Mill, não é menos supersticioso que o de um historicismo pessimista, como os de Platão e Spengler.

A TEORIA MORAL DO HISTORICISMO

Marx se propôs no Capital a descobrir as leis inexoráveis do desenvolvimento social, não a descobrir leis que fossem úteis à mecânica social. Contudo, embora Marx se opusesse fortemente à mecânica utópica e a qualquer tentativa de justificação moral dos objetivos socialistas, suas obras continham implicitamente uma teoria ética.

Marx condenou moralmente o capitalismo pela cruel injustiça que lhe era inerente, e que convivia com plena justiça e direito “formais”. O sistema é condenado porque, forçando o explorador a escravizar o explorado, rouba de ambos a liberdade. Marx não combatia a riqueza nem aplaudia a pobreza. Odiava o capitalismo, não pela concentração da riqueza, mas por seu caráter oligárquico; porque, nesse sistema, a riqueza implica poder político, poder sobre outros homens. Marx odiava o sistema porque ele se assemelhava à escravidão. Com sua ênfase nos aspectos morais das instituições sociais, Marx acentuou nossa responsabilidade pelas mais remotas repercussões sociais de nossas ações.

Encontramos alguns esboços nos escritos de Marx e Engels do que chamei de teoria moral historicista. Se um reformador social ou um revolucionário acreditam que são inspirados por um ódio à “injustiça” e pelo amor à “justiça”, são vítimas de uma ilusão. Suas noções de “justiça” e “injustiça” são subprodutos do desenvolvimento histórico e social; mas subprodutos importantes, pois fazem parte do mecanismo que propulsiona o desenvolvimento. Há sempre duas noções diversas, pelo menos, de “justiça” (ou de “liberdade”, ou de “igualdade”). Uma, a da classe dirigente; a outra, a da classe oprimida. Tais noções são produtos da situação de classe, mas ao mesmo tempo desempenham importante papel na luta de classes: fornecem a ambos os lados a consciência limpa que necessitam para levar adiante a luta.

Essa teoria da moralidade é historicista porque sustenta que todas as categorias morais são dependentes da situação histórica – um relativismo histórico no campo da ética. Mas esse “relativismo histórico” de modo algum esgota o caráter historicista da teoria moral marxista. A mais importante forma de “teoria moral historicista” é à que alude Engels quando escreve: “Por certo, aquela moralidade que contém o maior número de elementos destinados a durar é a única que, no passado recente, representa a derrubada do passado; é a única que representa o futuro; é a moralidade proletária ... De acordo com esta concepção, as causas últimas de todas as mudanças sociais e revoluções políticas não estão no maior conhecimento da justiça; não devem ser buscadas na filosofia, mas na economia da época a que se referem. O crescente reconhecimento de que as instituições sociais existentes são irracionais e injustas é apenas um sintoma ...”

A teoria depende em larga medida da possibilidade da correta profecia histórica. Se ela for questionada a teoria perde muito de sua força. Se a moral adotada for a do futuro, a teoria moral historicista nada mais é que outra forma do positivismo moral de Hegel: a força futura é o direito. Como estrutura teórica, não se diferencia do conservantismo moral, do modernismo moral e do futurismo moral. A teoria moral historicista de Marx resulta de sua concepção do método científico – o determinismo sociológico. Às teorias que enfatizam a dependência sociológica de nossas opiniões denomina-se por vezes sociologismo; se é acentuada a dependência histórica, são chamadas de historismo.

A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO

As filosofias historicistas de Hegel e Marx são filosofias de mudança e dão testemunho do tremendo impacto causado por um ambiente social em mutação. Platão reagiu a essa mutação procurando paralisar toda mudança. Em nossos próprios dias, os filósofos historicistas modernos tentam predizê-la e mantê-la sob controle racional, planejando-a em larga escala – como se não tivessem perdido inteiramente seus terrores. O desejo de Platão de deter qualquer mudança, combinado à doutrina marxista de sua inevitabilidade, dá origem a uma espécie de síntese hegeliana, à exigência de que a mudança, não podendo ser completamente detida, seja pelo menos “planejada” e controlada pelo Estado.

A sociologia do conhecimento argumenta que o pensamento científico ­– em particular sobre questões sociais e políticas – não opera num vácuo, mas numa atmosfera socialmente condicionada. Encara a ciência ou conhecimento como um processo da mente ou “consciência” do cientista individual. Se a objetividade científica se fundasse, como ingenuamente supõe a teoria sociológica do conhecimento, na objetividade do homem de ciência, teríamos de imediatamente abandoná-la. Ao contrário, entendemos que a “objetividade científica” decorre de seu método: do aspecto social do método científico, do fato que a ciência e a objetividade resultam da cooperação de muitos homens de ciência.

Dois aspectos do método das ciências naturais ilustram o “caráter público do método científico”. Primeiro, a crítica livre – uma nova teoria é apresentada e criticada; segundo, os cientistas evitam divergências verbais, usando uma linguagem comum: o experimento é árbitro imparcial de suas controvérsias, já que público no sentido que pode ser replicado. Para evitar controvérsias, as teorias são expressas de forma que possam ser refutadas ou corroboradas por experimentos.

É nisso que consiste a objetividade científica. Qualquer cientista poderá repetir a experiência e julgar por si mesmo. Esse aspecto do método científico demonstra os benefícios da existência de instituições concebidas para tornar possível o controle público e a expressão aberta da opinião, mesmo quando limitada a um círculo de especialistas. Só o poder político, quando usado para suprimir a livre crítica ou quando falha em protegê-la, pode prejudicar o funcionamento das instituições de que depende o progresso científico, tecnológico e político.

É aconselhável, portanto, caracterizar a ciência por seus métodos, em lugar de seus resultados. O que chamamos “objetividade científica” é um produto do caráter social ou público do método científico; e a imparcialidade do cientista individual não é a fonte, mas o resultado dessa objetividade da ciência socialmente ou institucionalmente organizada.

Os resultados científicos são “relativos” apenas enquanto resultados de uma certa etapa do desenvolvimento da ciência. Mas isso não significa que a verdade seja relativa: se uma afirmação é verdadeira, será verdadeira sempre. Significa apenas que a maioria dos resultados científicos tem o caráter de hipóteses –afirmações a respeito das quais a evidência não é conclusiva e que são suscetíveis de revisão a qualquer tempo.

As ciências sociais ainda não atingiram plenamente essa publicidade de método, devido em parte à influência destruidora de Aristóteles e Hegel, e em parte também à sua falha em fazer uso dos instrumentos sociais da objetividade científica. Alguns cientistas sociais são incapazes de falar em linguagem comum. O único caminho aberto às ciências sociais é utilizar os métodos teóricos que são fundamentalmente os mesmos em todas as ciências. Refiro-me aos métodos da tentativa e erro, de inventar hipóteses que possam ser submetidas a provas práticas (que as verificarão ou refutarão). É necessária uma mecânica social cujos resultados possam ser submetidos à prova. O método aqui sugerido é diametralmente oposto ao que sugere a sociologia do conhecimento.

A FILOSOFIA ORACULAR E A REVOLTA CONTRA A RAZÃO

A razão e o racionalismo são muitas vezes usados, não em oposição ao irracionalismo, mas ao empirismo. O racionalismo exalta a inteligência sobre a observação e a experimentação, e pode ser mais bem descrito como intelectualismo. Uso o termo racionalismo para incluir tanto o empirismo como o intelectualismo, pois a ciência faz uso tanto da experimentação como do pensamento. Emprego também racionalismo para indicar uma atitude que procura resolver tantos problemas quanto for possível por meio de um apelo à razão – ao claro pensamento e à experiência, em lugar de apelar à emoção e à paixão. Em termos de comportamento, podemos dizer que o racionalismo é uma atitude de disposição a ouvir argumentos críticos e a aprender com a experiência. A atitude racionalista, ou “da razoabilidade”, é muito semelhante à atitude científica, à crença de que na busca da verdade necessitamos da cooperação e que, com a ajuda da argumentação, podemos atingir a objetividade.

De certo modo, nossa análise da “razão” é levemente hegeliana, que considera a razão como um produto social. Mas há consideráveis diferenças. Hegel e os hegelianos são coletivistas. A posição aqui apresentada não supõe a existência de coletivos; a razão refere-se a indivíduos concretos e a nosso intercâmbio com eles. Essa teoria “social” da razão (ou do método científico) é mais precisamente uma teoria interpessoal e nunca é coletivista. Diverge também da concepção popular, originaria- mente platônica, que vê a razão como uma espécie de “faculdade” que pode ser possuída e desenvolvida por diversos indivíduos em graus vastamente diferentes. Não só devemos nossa razão aos outros, como não podemos exceder os outros em nossa razoabilidade, de modo a estabelecer uma reivindicação de autoridade; o autoritarismo e o racionalismo não podem se reconciliar, já que a argumentação, que inclui a arte de ouvir críticas, é a base da razoabilidade. Dessa forma, o racionalismo é diametralmente oposto a todos esses modernos sonhos platônicos de admiráveis mundos novos em que o crescimento da razão seja controlado ou “planejado” por alguma razão superior. A razão, como a ciência, cresce por meio da crítica mútua; a única maneira possível de “planejar” seu crescimento é desenvolver instituições que salvaguardem a liberdade dessa crítica, isto é, a liberdade de pensamento.

O verdadeiro racionalismo é o racionalismo de Sócrates. É a consciência das próprias limitações, a modéstia intelectual dos que sabem que erram e que dependem dos outros, até para esse conhecimento. É a constatação de que não devemos esperar muito da razão, que a argumentação raras vezes dirime uma questão, embora seja o único modo de aprender – não a ver claramente, mas a ver mais claramente do que antes.

O “pseudo-racionalismo” é o intuicionismo intelectual de Platão. É a crença imodesta nos dotes intelectuais superiores de alguém e a reivindicação de ser um iniciado, de saber com certeza e com autoridade.

A HISTÓRIA TEM ALGUMA SIGNIFICAÇÃO?

Todas as descrições científicas de fatos são altamente seletivas, sempre dependentes de teorias. Dadas a infinita riqueza e a variedade dos possíveis aspectos de nosso mundo, uma descrição científica dependerá em larga medida de nosso ponto de vista, de nossos interesses, que são como uma regra relacionada com a teoria ou hipótese que desejamos testar; mas também dependerá dos fatos descritos. Procuramos formular nosso ponto de vista como uma hipótese operacional, ou seja, uma suposição provisória cuja função é auxiliar-nos a selecionar e ordenar os fatos – não pode haver nenhuma teoria que não seja uma hipótese operacional.

Isso é mais enfaticamente verdadeiro no caso da descrição histórica, com seu “infinito tema de estudo”, no dizer de Schopenhauer. Na história, não menos que na ciência, não podemos esquivar-nos a um ponto de vista, e a crença de que pudéssemos fazê-lo nos levaria ao auto-engano e à falta de cuidado crítico.

A história difere da física, cujo “ponto de vista” é habitualmente apresentado como uma teoria que pode ser corroborada pela busca de fatos novos. Nas ciências naturais as teorias podem ser utilizadas para explicar, prever ou corroborar, dependendo de nosso interesse – tendo em mente que nunca podemos falar de causa e efeito de modo absoluto, mas sempre com relação a alguma lei universal; predizer certo evento específico é apenas outro aspecto do uso de uma teoria para explicar o evento; e corroborar significa comparar os eventos preditos com os efetivamente observados.

No caso das ciências teóricas (ciências generalizadoras) – a física, a biologia, a sociologia, etc. – estamos interessados principalmente em falsificar ou corroborar leis ou hipóteses universais. Se desejamos saber se são verdadeiras adotamos o método de eliminar as falsas. No caso das ciências aplicadas nosso interesse é diferente: as leis universais são meios para um fim, e são tomadas como um dado.

Os que se interessam por leis universais devem utilizar leis generalizadoras (por exemplo, a sociologia): elas introduzem unidade e um “ponto de vista”; criam seus problemas e seus centros de interesse e pesquisa, de construção lógica e de apresentação. As ciências voltadas a explicar eventos específicos são chamadas ciências históricas. De nosso ponto de vista não pode haver leis históricas. Na história não temos teorias unificadoras – a multidão de leis universais que utilizamos são tomadas como dadas; são praticamente destituídas de interesse e totalmente incapazes de introduzir ordem no tema de estudo. As leis universais que a explicação histórica utiliza não fornecem qualquer princípio seletivo e unificador, nenhum “ponto de vista”. Na história, os fatos à nossa disposição são muitas vezes limitados, não podem ser repetidos e foram coletados de acordo com um determinado ponto de vista. Como não se dispõe de fatos novos, em geral não é possível pôr à prova esta ou aquela teoria. Por essas razões, denomino interpretações gerais essas teorias históricas, em contraposição às teorias científicas.

Uma interpretação geral não pode ser corroborada, mesmo que se conforme com todos os dados disponíveis – não somente o processo é circular, como o mesmo conjunto de fatos pode ser consistente com teorias incompatíveis.

Em suma, não pode haver história “do passado como efetivamente ocorreu”, mas apenas interpretações históricas, nenhuma delas definitiva. Em vez de reconhecer que a interpretação histórica deve responder a uma necessidade que tem origem nos problemas práticos e nas decisões que nos confrontam, o historicista contempla a história para descobrir o segredo, a essência do destino humano, o Significado da História.

A história humana não tem qualquer significado. Não há uma história da humanidade em si, mas uma infinidade de histórias de todas as espécies de aspectos da vida; somadas, não constituem uma história da humanidade. Afirmar que a história não tem significado, contudo, não quer dizer que devamos limitar-nos a olhar atônitos para a história do poder político. Podemos interpretá-la, para resolver os problemas do poder político de nossa época. Podemos interpretar a história do poder político do ponto de vista de nossa luta pela sociedade aberta, por um regime da razão, pela justiça, igualdade e liberdade. Embora a história não tenha finalidade, podemos impor-lhe essas finalidades – embora a história não tenha significado, podemos dar-lhe um significado.
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Busca da humanidade e da razoabilidade, da igualdade e da liberdade.

“Tudo está em fluxo..... Não podem mergulhar duas vezes na mesma água do rio. ”HERÁCLITO

“O marxismo é apenas um episódio, um dos muitos erros que os homens têm cometido, na perene e perigosa luta pela edificação de um mundo melhor e mais livre”. Prefácio da segunda edição, p. 8.

“Vejo agora, mais claramente do que nunca, que nossas maiores aflições nascem de algo que é tão admirável e sadio quanto é perigoso: de nossa impaciência por melhorar a sorte do próximo. Tais aflições são subprodutos do que é talvez a maior de todas as revoluções morais e espirituais da história, um movimento que teve começo há três séculos. É o anseio de inúmeros homens desconhecidos por libertar-se, e a seus espíritos, da tutela da autoridade e do preconceito. É sua tentativa de edificar uma sociedade aberta, que rejeita a autoridade absoluta do que é meramente estabelecido e meramente tradicional, ao mesmo tempo em que tenta preservar, desenvolver e estabelecer tradições, velhas ou novas, que se meçam por seus padrões de liberdade, de humanidade e de crítica racional. É sua repugnância a ficar sentados, deixando que a total responsabilidade de governar o mundo caiba a uma autoridade humana ou sobre-humana; é sua presteza em compartilhar da carga de responsabilidade pelos sofrimentos que podem ser evitados, em trabalhar para que eles se evitem. Essa revolução criou forças de tremendo poder destruidor, mas ainda podem elas ser dominadas”. IDEM, p. 9.

SAIBA MAIS em a SOCIEDADE DEMOCRÁTICA E SEUS INIMIGOS – de Karl R. Popper, ed. Itatiaia Limitada, Belo Horizonte/MG, 1959 – ou outra edição.

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